IMUNOTERAPIA...INFANTARIA IMUNOLÓGICA EM AÇÃO...

04 de abril de 2015 

EXTRAORDINÁRIA, FANTÁSTICA E REVOLUCIONÁRIA TÊM SIDO OS ADJETIVOS PARA A LINHA DE TRATAMENTO QUE APOSTA NO SISTEMA DE DEFESA NATURAL DO CORPO NA LUTA CONTRA O CÂNCER...


Habituados a avanços lentos e promessas grandiosas que acabam por não se confirmar, médicos e pesquisadores da área do câncer costumam ser cautelosos diante de novas linhas de tratamento. Por isso mesmo, é significativo o entusiasmo que muitos deles demonstram quando o assunto é a imunoterapia. 

Apesar de tratar-se de uma estratégia que recém começa a ser incorporada na prática clínica, ela já merece adjetivos como “extraordinária”, “fantástica” e “revolucionária”. Em 2013, foi considerada o avanço do ano pela revista Science, da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Nos dias atuais, existem já milhares de pacientes que só estão vivos por causa dela.

– Pelo que vejo acontecer nos principais centros do mundo, posso dizer que estamos entrando em uma nova era do tratamento do câncer. A imunoterapia está revolucionando os resultados em vários tipos de tumor – celebra o oncologista gaúcho André Fay, pesquisador visitante do Dana-Farber Cancer Institute/Harvard Medical School (EUA), instituição de ponta no estudo da técnica.

O curioso é que as medicações imunoterápicas, diferentemente de tratamentos tradicionais como a quimioterapia ou a radioterapia, não se preocupam em atacar os tumores. O que elas fazem é agir sobre o sistema imunológico, mobilizando as defesas naturais do organismo para combater as células cancerígenas. Em teoria, o conceito relacionando o sistema imunológico e o desenvolvimento de tumores existe há mais de um século. Na prática, utilizar o próprio sistema imunolólgico no combate ao câncer começou a funcionar nos últimos anos, graças a descobertas recentes sobre a biologia dos tumores.

A partir dos anos 80, pesquisadores identificaram a presença de certos receptores nos linfócitos T, a infantaria do sistema imunológico. Esses receptores – os mais conhecidos são o PD-1 e o CTLA-4 – funcionam como uma espécie de botão de liga e desliga das células de defesa. Por meio de proteínas presentes na sua membrana, as células cancerígenas conseguem acionar esse interruptor, desligando o sistema imunológico. O resultado é que o tumor cresce, sem ser reconhecido como uma ameaça.

André Fay – que voltou recentemente ao Estado para atuar no Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, mas continua trabalhando com pesquisadores do Dana-Farber Cancer Institute pioneiros no campo da imunoterapia – observa que o mecanismo usado pelos tumores é o mesmo que protege órgãos e tecidos saudáveis. Eles também expressam proteínas que inativam o sistema imunológico.

– No Dana-Farber, pesquisou-se por muitos anos a interação entre a célula de defesa e proteínas expressas na membrana dos tumores. Quando o mecanismo foi compreendido, concluiu-se que bloquear essa interação manteria o sistema imunológico ativado. Desenvolveram-se anticorpos específicos que impedem a ligação do receptor da célula de defesa com o seu ligante na célula tumoral. Quando isso ocorre, as células de defesa combatem o tumor como se ele fosse uma infecção – explica.

 Mais medicamentos devem ser aprovados em breve

Os primeiros resultados dessa estratégia apareceram em pacientes com melanoma metastático, uma forma agressiva de câncer de pele para a qual a medicina não oferecia nenhuma alternativa eficaz. Com a imunoterapia, ocorreram regressões surpreendentes e prolongadas nos tumores de uma parcela considerável dos pacientes. Em um dos estudos, 53% dos doentes que receberam a dose máxima da medicação tiveram reduções de pelo menos 80% no tumor.

Com o sucesso no tratamento do melanoma, o interesse pela imunoterapia explodiu. E as boas notícias não param de vir dos centros de pesquisa. Em diferentes tipos de câncer avançado, nos quais já se havia tentado de tudo, os novos remédios ofereceram resultados sem precedentes. Pelo potencial de salvar vidas, a FDA, agência americana de medicamentos, abreviou os trâmites para a aprovação de imunoterápicos. Algumas medicações já foram liberadas. E um número muito maior, para variados tipos de câncer, deve estar disponível em breve.

– Em um ou dois anos, vamos ver a aprovação de vários desses medicamentos. Durante décadas, a imunoterapia foi vista com ceticismo por médicos e pesquisadores, mas hoje não existe área mais estimulante na oncologia – observa Gilberto Schwartsmann, chefe do serviço de oncologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

COMO FUNCIONA

Imunoterapia, são usados medicamentos que tornam o câncer vulnerável à ação do sistema imunológico.

O SISTEMA DE DEFESA

O organismo dispõe de um conjunto de mecanismos de defesa contra doenças conhecido como sistema imunológico. Quando esse sistema detecta a presença de algum agente nocivo, como vírus ou bactérias, ele aciona células de defesa, que combatem a ameaça.


A ESTRATÉGIA DOS TUMORES 

Os tumores contam, na membrana das células, com proteínas que são capazes de neutralizar o sistema imunológico. Essas proteínas conseguem se conectar a receptores existentes nas células de defesa. Quando essa conexão acontece, o sistema imune é desativado. A célula de defesa deixa de funcionar. Dessa forma, o câncer cresce sem obstáculo. O mecanismo é o mesmo que impede órgãos e tecidos sadios de serem atacados pelo sistema imunológico.

A ESTRATÉGIA DA IMUNOTERAPIA 

Estudos sobre o sistema imunológico permitiram desenvolver drogas que atuam diretamente em seu mecanismo de controle. Essas medicações, injetadas pela corrente sanguínea, ocupam o espaço da ligação entre a proteína do tumor e o receptor da célula de defesa, impedindo a conexão. Dessa forma, as células de defesa não são desativadas. Combatem o tumor como se ele fosse uma infecção qualquer.


AS ORIGENS

Saiba como surgiram as primeiras pesquisas sobre imunoterapia para tratar o câncer.


Em 1987, pesquisadores franceses identificaram um novo receptor na superfície dos linfócitos T, uma célula do sistema imunológico. Esse receptor foi chamado de CTLA-4.


O imunologista James Allison, da Universidade do Texas, descobriu que o CTLA-4 poderia refrear a ação das células T, impedindo o sistema imunológico de atacar. Ele especulou que bloquear o receptor poderia fazer o sistema imunológico atacar um câncer. Em 1996, Allison demonstrou que o uso de anticorpos contra o CTLA-4 era capaz de eliminar tumores em ratos. 

Também nos anos 90, um biólogo japonês descobriu uma outra molécula em células T, batizada de PD-1, que bloqueava a ação das células T. Logo após, Arlene Sharpe e Gordon Freeman, pesquisadores do Dana-Farber Cancer Institute, descreveram os ligantes do receptor PD-1, chamados PD-L1 e PD-L2, ampliando o conhecimento sobre o funcionamento do sistema imune e colaborando para o desenvolvimento de drogas nessa via. 

Os grandes laboratórios consideravam a imunoterapia uma linha com pouco futuro, mas um pequena empresa de biotecnologia norte-americana, a Medarex, adquiriu em 1999 os direitos do anticorpo para o CTLA-4.

Em 2006, a Medarex começou a testar também em humanos anticorpo para a molécula PD-1. Foram estudados 39 pacientes com cinco tipos de câncer. Dois anos depois, tumores avançados de cinco pessoas diminuíram. Alguns pacientes viveram muito mais do que o esperado.

Em 2010, o laboratório Bristol-Myers Squibb, que havia adquirido o Medarex, anunciou o primeiro resultado do anticorpo para o CTLA-4 com humanos. Pacientes com melanoma metastático que receberam o medicamento imunoterápico viveram em média 10 meses. Os que não o receberam viveram seis meses. Um quarto daqueles que receberam o anticorpo viveram pelo menos dois anos.

Em 2011, a FDA, agência americana de medicamentos, aprovou o uso do anticorpo para o CTLA-4 para tratamento de melanoma metastático.

Em 2012, pesquisadores da Johns Hopkins University e da Yale University revelaram o resultado do anticorpo contra o PD-1, que havia diminuído pelo menos pela metade o tumor de 31% dos pacientes de melanoma, 29% dos de câncer renale 19% dos de pulmão.

Em 2013, pesquisadores divulgaram que a combinação dos dois anticorpos havia provocado uma regressão rápida e profunda dos tumores de31 doentes de melanoma.

A partir dos bons resultados, teve início uma corrida para desenvolver novos anticorpos, estudar o uso combinado deles nos pacientes e testar a imunoterapia em diferentes tipos de câncer. Há uma infinidade desses estudos em andamento. Em vários tipos de tumor, inclusive em estágio muito avançado, os resultados são impressionantes.

Espera-se a aprovação de uma série de medicamentos novos nos próximos dois anos.


TRATAMENTO AINDA TEM DIVERSAS INCERTEZAS

 

Não há dúvidas de que a imunoterapia veio para ocupar um lugar de honra no combate ao câncer – ao lado da tríade cirurgia, radioterapia e quimioterapia –, mas muitas incertezas ainda cercam a nova estratégia de tratamento. Uma das questões que aguardam resposta é o motivo para a terapia oferecer resultados espetaculares em alguns pacientes e não dar resultado nenhum em outros.

Carlos Barrios, professor da PUCRS e diretor do Instituto do Câncer do Mãe de Deus, observa que, em muitos dos estudos feitos até o momento, as medicações têm beneficiado apenas de 20% a 30% dos pacientes.

– O fato de que agora temos pacientes que respondem é entusiasmante, porque antes não tínhamos opções nesses tipos de câncer. Mas ainda não é em todos os casos – diz Barrios.

Uma via promissora para melhorar o alcance do tratamento é usar mais de um imunoterápico ao mesmo tempo. Segundo Barrios, em alguns estudos onde dois medicamentos foram ministrados em conjunto, as taxas de sucesso aumentaram dramaticamente, batendo nos 80% – e isso em doenças de estágio avançado, em que nenhum outro tipo de terapia funcionou. O certo é que, para ampliar o sucesso da nova terapia, ainda é preciso aprofundar muito a pesquisa sobre a interação entre sistema imunológico e câncer.

– Existem muitas proteínas e receptores envolvidos no processo. Não sabemos qual é o papel de cada um, como bloquear certas proteínas e que proteínas devem ser bloqueadas. Há muito a evoluir – relata o oncologista André Fay.

Outra dúvida diz respeito ao tipos de tumor que poderão ser beneficiados pela imunoterapia. Já há aprovação de drogas para tratar o melanoma e o câncer de pulmão. Mas não existe certeza do quanto a lista pode se ampliar. No Hospital São Lucas, por exemplo, Barrios testa as novas drogas em pacientes com câncer de pulmão, bexiga, melanoma, estômago e rim. São tumores que, em estudos mundo afora, têm respondido muito bem à nova técnica.

– A imunoterapia deve funcionar nos tumores que têm alguma relação com o sistema imunológico. Aparentemente, beneficiam-se os tumores que têm uma taxa maior de mutação genética, porque se tornam um alvo mais fácil para o sistema imunológico – diz Barrios.
 

Duração é ponto incerto

Outra questão nebulosa diz respeito ao tempo de duração dos tratamentos. Há indícios de que a imunoterapia pode alterar de forma prolongada ou mesmo permanente o comportamento do sistema imunológico, levando-o a atacar as células cancerígenas mesmo depois de a medicação ser suspensa. É como se o sistema estivesse dormindo e a terapia o acordasse. Outra possibilidade é que o câncer se torne uma doença crônica, com necessidade de uso dos medicamentos por toda a vida. Nesse caso, o paciente teria de conviver com efeitos colaterais bastante distintos daqueles comuns a outras terapias. Ao desativar o mecanismo que refreia o sistema imunológico, a imunoterapia favorece o ataque não só ao câncer, mas também a tecidos sadios:

– Quando a gente usa uma medicação sistêmica que atinge todo o organismo, ao mesmo tempo em que atinge o tumor também pode gerar uma resposta inflamatória no órgão sadio. Os efeitos colaterais estão relacionados à imunidade, a todas as inflamações que se pode ter, como colite ou hepatite. Estamos aprendendo a lidar com isso – pondera André Fay.

Apesar dos desafios a superar, as razões para otimismo são muitas, a começar pelo fato de que a imunoterapia tem sido usada, por enquanto, apenas naqueles pacientes em situação mais crítica.

– Com a imunoterapia, conseguimos respostas positivas onde antes não tínhamos resposta nenhuma. E essa resposta é muito prolongada. O entusiasmo é compreensível – observa Barrios.

 

OUTRAS ESTRATÉGIAS DE IMUNOTERAPIA

 

INJEÇÃO DE CÉLULAS DE DEFESA

 

Células T são ativadas em laboratório após contato com proteínas que constituem o tumor. Depois, são reinjetadas no paciente. Estudos mostraram que esssas células imunológicas podem produzir efeitos significativos, notadamente em câncer de próstata.

 

VÍRUS 

 

Vírus modificados que podem ser eliminados facilmente por células saudáveis são injetados no organismo. Esses vírus conseguem entrar em células tumorais e destruí-las, o que coloca o sistema imunológico em alerta e faz as células de defesa identificarem o tumor – mesmo as células que não foram atingidas pelo vírus – como uma ameaça.

 

PERSONALIZAÇÃO É A PRÓXIMA ONDA

Os conhecimentos sobre biologia molecular que transformaram a imunoterapia em nova fronteira do combate ao câncer já apontam para aquele que deve ser o próximo estágio na história da luta contra a doença: a personalização. Na medida em que a compreensão dos tumores se aprofunda, os pesquisadores vislumbram um período em que será possível prescrever medicações certeiras para cada paciente.

Voltado para essa linha de pesquisa, o oncologista André Fay acaba de ter um trabalho premiado pela Sociedade Americana de Oncologia. Especialista em câncer de rim, o gaúcho estudou a presença de mutações genéticas em dois grupos de pacientes da doença. Um deles era formado por pessoas que respondiam de forma extraordinária a uma medicação. O outro, por doentes em que o mesmo remédio não fazia qualquer efeito. De forma inédita, a pesquisa apontou a existência de algumas mutações que parecem estar relacionadas com o sucesso ou o fracasso da terapia.

– Se esse achado for confirmado, será um passo importante na personalização do tratamento. Quando se fala em câncer de rim, são muitas doenças diferentes. Existem vários medicamentos disponíveis, mas não sabemos qual é o mais adequado para cada caso. Ainda estamos em uma fase inicial de pesquisa, mas daqui a algum tempo poderemos pegar o tumor de um paciente, submetê-lo a análises genéticas e moleculares e saber qual dos tratamentos disponíveis é o mais indicado. Vai ser uma oncologia individualizada, em que vamos entender o câncer específico do paciente e oferecer para ele os maiores benefícios – diz Fay.

- Resultados são revolucionários

As vantagens disso são enormes. Hoje, os profissionais vão testando uma medicação depois da outra, até encontrar aquela que oferece melhor resposta. Nesse processo, o paciente com frequência é submetido a drogas que não fazem efeito – o que significa perda de tempo, sujeição a mais agentes tóxicos e sobrevida menor.

Já há algumas histórias de sucesso na linha da personalização. O oncologista Carlos Barrios cita o caso da leucemia mielóide crônica. Os médicos passaram a identificar quais pacientes da doença tinham uma determinada alteração que era fundamental para a sobrevivência das células tumorais. Nesses doentes, recorre-se a uma medicação específica, que bloqueia aquela alteração. O resultado é que eles vivem décadas.

– Saber o que a célula precisa para viver e oferecer um tratamento contra aquela necessidade específica é a melhor estratégia. Isso está começando a acontecer em uma série de tumores. É uma revolução – relata Barrios.

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