15/01/2012
Pesquisa científica: comissões de ética tentam regular e nortear os focos da pesquisa científica.
A criação de uma forma mais letal do vírus H5N1 retoma a questão sobre até que ponto a ciência é livre para estudar e fazer o que bem entender.
A criação de uma forma mais letal do vírus H5N1 retoma a questão sobre até que ponto a ciência é livre para estudar e fazer o que bem entender.
Em 1929 o filósofo e educador John Dewey, criador da Educação Progressiva e um dos pais da Filosofia do Pragmatismo nos Estados Unidos, cunhou a seguinte frase: “Todo grande avanço da ciência surge de uma audácia da imaginação”. A audácia do momento, que ganhou notoriedade após uma tentativa do governo americano de proibir sua publicação, são dois estudos realizados separadamente por pesquisadores americanos e holandeses. Após promover inúmeras mutações no vírus H5N1, causador da gripe aviária, as equipes conseguiram fazer com que o micro-organismo, antes transmitido ao homem somente pelo contato direto com aves, circulasse entre humanos pelo ar. Conseguiram, com isso, entender os possíveis caminhos da evolução do micro-organismo. Mas também aumentaram, inegavelmente, os riscos de uma pandemia de proporções catastróficas.
O propósito dos estudos, obviamente, não era criar uma espécie mais letal do vírus. Os cientistas precisavam entender a evolução do micro-organismo para desenvolver vacinas e remédios mais eficazes. A possibilidade, no entanto, de que os dados caíssem em mãos erradas, 'ensinando' bioterroristas a criar um vírus altamente letal e de fácil transmissão, por exemplo, fez com que o Painel Científico Consultivo para a Biossegurança dos Estados Unidos (NSABB, da sigla em inglês) questionasse a sua divulgação. O comitê pediu que a pesquisa fosse publicada sem os detalhes que explicam como a mutação do vírus foi alcançada.
Por mais difícil que seja reproduzir os resultados, e apesar de genomas inteiros de vírus já tenham sido publicados antes, o trabalho comandado pelo médico holandês Ron Fouchier reacendeu a velha discussão sobre os limites da ciência. Os exemplos dessa disputa são inúmeros. Até hoje há quem defenda o fim de pesquisas que modificam geneticamente embriões animais, embora os benefícios práticos já sejam usufruídos pelo homem em seu dia-a-dia.
O projeto Genoma Humano, iniciado na década de 1990, também foi duramente criticado. Na época, virou clichê dizer que os cientistas tentavam "brincar de Deus". O tempo mostrou, no entanto, que a liberdade da ciência em escolher o estudo dos genes estava certa. Embora os benefícios diretos ao homem ainda estejam em estágio inicial, terapias gênicas já curaram em cobaias doenças como daltonismo, distrofia muscular e cardiomiopatia. E os cientistas preveem um futuro promissor para muitos outros tratamentos.
"A ciência deve ser livre", afirma José Roberto Goldim, professor da Faculdade de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul, chefe do Serviço de Bioética do Hospital das Clínicas de Porto Alegre e pesquisador sobre ética na ciência. “A pesquisa científica deve ter liberdade para escolher seu foco de estudo, seja ele qual for." Em outras palavras, não importa o quão perigoso seja o organismo, a substância ou o meio estudado. A liberdade de conhecimento é e deve permanecer um bem inexorável.
"Censurar a pesquisa científica é o mesmo que censurar a imprensa", diz Ricardo José Giordano, presidente da Comissão Interna de Biossegurança do Instituto de Química da USP. Para o especialista, as restrições do que deve ou não ser estudado podem impedir o avanço da ciência e a transmissão de conhecimento.
"Nenhum tipo de conhecimento, mesmo aqueles cujos resultados foram negativos, deve ser banido", diz Goldim. De acordo com o especialista, a Biblioteca Nacional de Medicina (PUBMed) que pertence ao Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, um dos principais bancos de dados em pesquisa médica do mundo, tem o hábito de manter estudos com resultados 'negativos' no ar. "Esse material, retratado como inadequado, permanece disponível para análise e estudo de especialistas", diz. Assim, em vez de banir ou censurar a publicação dos artigos, a comunidade científica garante que o mesmo erro não seja cometido duas vezes — e acelera o processo de pesquisa.
Autoavaliação-Preservar a liberdade científica não significa, obviamente, que o trabalho dos cientistas não esteja sob constante avaliação. Desde o fim do século 19, quando vacinas eram testadas em crianças e prostitutas (muitas delas morriam, evidentemente), e depois que experimentos realizados em cobaias humanos durante a Segunda Guerra Mundial vieram à tona e chocaram o mundo, comitês e comissões de ética criados pela sociedade científica procuram nortear a pesquisa.
O objetivo desses órgãos é garantir que os estudos sejam feitos com o fim único de trazer benefícios à humanidade e todas as pesquisas são avaliadas por comissões que garantem sua realização dentro de preceitos éticos. O que, evidentemente, não impede desvios. Em 1999, uma fraude do médico inglês Andrew Wakefield atestava que vacinas podiam causar autismo e foi publicada na prestigiosa revista médica Lancet. Causou estragos imensuráveis ao jogar os pais na defensiva contra as vacinas. Mas, justamente por ser pública, foi analisada e desmascarada por um jornalista. Wakefield teve sua licença revogada e não pode mais praticar a medicina. Um mundo no qual as informações circulam livremente não elimina os erros, mas inegavelmente torna mais fácil corrigi-los quando eles acontecem.
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