29/12/2013
O Nando passou quatro meses dando carona para a Élida, uma das
colegas com quem atuava em uma peça de teatro e que tentava conquistar
imaginando estar diante do amor da sua vida. Para seduzi-la, ele seguia a
receita do italiano Casanova: "Não há mulher que resista a assiduidade e
atenção".
Nando Bolognesi e o bom humor inabalável
Nando Bolognesi com o filho, Leonardo, de oito anos, na casa da família em Itu
O ator Nando Bolognesi, que sofre de esclerose múltipla, faz espetáculos e palestras contando como supera os percalços que a vida lhe trouxe com alto astral e bom humor
Nando com a mulher, Élida, depois de passar por um transplante de medula
O ator em 1997, na peça Tartufo, de Molière
Nando em viagem de bicicleta pela Holanda
Com os Doutores da Alegria, que integrou até quando conseguia andar apenas de bengala; hoje, usa muletas
No curta "Pedro e o Senhor", dirigido pelo irmão Luiz Bolognesi
*
Naquela noite de 1994, os dois enfim "se pegaram" em uma festa. E
Nando estava levando a jovem para a chácara de seu pai, em Itu. Já
pensava em "abrir um vinhozinho, pegar uma sauninha", quando sentiu
"vontade de fazer xixi". Se segurou o quanto pôde. Ao sair do carro, na
porta da casa, sentiu "um líquido quente na perna". Tentou disfarçar.
Mas os cães da família "vieram com o focinho no meio da minha perna".
Arrasado, ele se desculpou. E foi para o chuveiro.
*
De repente, a porta do banheiro range. Era Élida: "Posso tomar banho com você?".
*
"E a gente tá tomando banho há 19 anos", diz Luiz Fernando
Bolognesi, 45, ator, palhaço profissional, marido da Élida, pai do
Leonardo, que vive essa e outras histórias tragicômicas desde que, em
1990, foi diagnosticado com esclerose múltipla. A doença, degenerativa,
vem roubando os movimentos de seu corpo. E traz incômodos adicionais
como incontinência urinária.
*
Em 2014, Nando pretende ganhar dinheiro revelando, no teatro, as
cachaças que tomou e os tombos que já levou. É o que chama de "plano Z"
profissional: por causa da doença, teve que abandonar a carreira de ator
(caía no palco) e mais tarde a de palhaço (integrou os grupos Doutores
da Alegria e Jogando no Quintal até quando conseguia andar apenas de
bengala; hoje, usa muletas). Prestou concurso público. Passou. Mas foi
reprovado na perícia médica.
*
Diante das portas que se fechavam, resolveu retomar projeto
antigo: se apresentar sozinho no palco, falando dos percalços da própria
vida. "Eu nunca gostei de stand-up comedy. Resolvi fazer a 'sit down
tragedy'." As primeiras apresentações, na Faap e num teatro na Pompeia,
lotaram com a divulgação entre amigos do Facebook. Prepara outras tantas
para 2014.
*
Nelas, que terminam sempre entre choros e gargalhadas, Nando
conta que, até os anos 80, era o típico jovem da classe média alta de
SP: filho de executivo, era o caçula de dois irmãos (o mais velho é o
cineasta Luiz Bolognesi, casado com a diretora Laís Bodanzky). Estudou
no Colégio Santa Cruz. Entrou em economia na USP e em história na PUC.
Vivia da mesada do pai.
*
Virou "um aluno bem medíocre", "deslumbrado com a liberdade" de
que gozam os universitários de seu círculo social. Até queria mudar o
mundo. Mas gostava mesmo era de jogar basquete no clube Paineiras,
remar, correr e jogar futebol. "Me dedicava aos esportes e às noitadas."
*
Aos 21 anos, recém-formado, ganhou um presentão do pai: uma passagem para rodar a Europa e "espairecer" antes de pegar no batente.
*
"Foi uma coisa muito intensa, uma descoberta, um sonho", lembra.
Arranjou emprego numa "relojoariazinha vagabunda no metrô", em Londres.
Refletia, escrevia um diário. Começou a achar que a civilização "estava
sendo escravizada". Decidiu que seria ator.
*
*E, claro,* encontrou logo um campo e amigos para jogar futebol. Foi
então que deu o primeiro tropeço. "Joguei mal, chutei o chão." Num outro
dia, ao correr para pegar o metrô, quase caiu da escada rolante.
"Pensei: 'Que esquisito'. Mas a viagem estava tão incrível que eu não
tinha tempo para ficar em crise."
*
*Em Paris,* caiu numa sarjeta e não conseguiu se levantar sozinho. Na
Itália, teve dificuldades para preencher a ficha do hotel. Não conseguia
apertar o frasco do desodorante. Procurou um hospital. Queriam
interná-lo. Voltou ao Brasil. E teve o diagnóstico da esclerose
múltipla.
*
O médico disse à família que, mesmo com a doença, ele poderia
levar uma vida normal. Chegou a voltar para a Europa e a viajar com um
amigo de bicicleta pela Holanda. Amarrava o pé que estava sem força no
pedal. Levava tombo atrás de tombo. Mas a vida seguia, bela e intensa. E
ele, "desencanado".
*
Só voltou a se preocupar num dia em que, na Bélgica, não
conseguiu mexer um dos pés. "Senti então a mesma sensação de quando fui à
boca do vulcão Stromboli, na Itália, e começou uma micro-erupção. Não
era medo. E sim um grande respeito. Vi que me confrontava com uma coisa
muito maior. Tive a mesma sensação de pequenez."
*
A segunda "ficha que caiu" foi quando soube que a incidência da
esclerose era de um caso para cada grupo de 100 mil habitantes no
Brasil. "Era como seu eu estivesse no Morumbi, na final do Corinthians e
São Paulo, e anunciassem que alguém ali teria a doença. A gente sempre
acha que as coisas acontecem com o outro. Aí seria alguém do setor
amarelo. Da fila J... eu! Cara, eu sou o outro. Tá acontecendo comigo!"
*
"E não adianta eu ter pai bem relacionado, tio deputado, ser bom
aluno. Nada disso vai resolver", segue ele. "As coisas são como elas
são. Não tem merecimento, sentido da vida. As coisas são e pronto. A
gente é que pendura os significados nelas. A vida tá aí, bicho. A vida
tá aí e você não é diferente de ninguém. Eu sou eu só pra mim. Para os
outros 6 bilhões de pessoas do mundo, eu sou o outro. E, se acontece com
o outro, acontece comigo também." Virou o pior jogador do time de
futebol. "De repente, eu era aquele cara com quem eu sempre tinha
gritado. Foi um trabalho de humildade."
*
Parou de beber e passou a se alimentar melhor. Entrou na EAD
(Escola de Artes Dramáticas) da USP. "Fiquei encantado. Como eu tinha
vivido sem aquilo por tanto tempo?" Mas logo veio um novo tombo. Agora
em público, na primeira peça em que atuou.
*
"Baita sucesso, casa cheia", lembra. Ele entra em cena. E se esborracha
no chão: as sequelas da doença, que tiram a força das pernas, já se
manifestavam de forma contundente. "Aí fiquei mal: 'Caramba, bicho. Será
que a esclerose vai me impedir de ser ator?'." Seguiu na profissão com
essa dúvida.
*
Chorava no quarto, e só se fortalecia ao ouvir "Maria, Maria", de
Milton Nascimento e Fernando Brant, na voz de Elis Regina. "'É isso aí,
cara. Sou corintiano, é preciso ter força, é preciso ter gana'. Virou
ritual: quando estava 'down', eu falava 'Elis, Elis, vamos lá'. E botava
o disco."
*
No último semestre da EAD, a luz surgiu no fim do túnel: Nando
fez oficina de palhaço. E se identificou com "aquela figura que tropeça,
que faz a coisa errada, que é inapto, chega em último. Porque eu sempre
fui inadequado. Na economia, usava brinco. Na história, era o
burguesinho que tinha carro. Na EAD, o careta, que usava camisa por
dentro da calça."
*
Nascia o palhaço Comendador Nelson. Na "pele" dele, Nando visitou
hospitais com os Doutores da Alegria. Fez sucesso com a companhia
Jogando no Quintal. Atuou em hospitais psiquiátricos na dupla
Fantásticos Frenéticos. "Eu sempre falo: as soluções são simples e
óbvias. A gente não as vê porque fica se martirizando." Uma das coisas
que a profissão de palhaço ensina, diz, é a "desdramatizar o mundo". Fez
vários tipos de terapia -antroposófica, xamânica, com um pai de santo.
*
*Em 2005,* começou a piorar. Passou da cortisona em comprimido para
intravenosa. Em seguida, quimioterapia. Em 2009, se submeteu a um
transplante de medula. Ficou 45 dias internado. Tinha "sonhos intensos,
muito malucos, muito fortes".
*
A doença estacionou. Mas a fadiga crescia. Da bengala, passou a
usar muletas. A profissão de palhaço também chegava ao fim. "Foi aí que
falei: 'Bom, vou prestar concurso publico'." À euforia do sucesso nas
provas para ser auditor fiscal sobreveio a reprovação na perícia médica,
que o fez recorrer à Justiça contra a Prefeitura de SP.
*
E é por isso que agora Nando, que hoje vive em Itu, partiu para as palestras. Ansioso, mas achando que tudo vai dar certo.
*
E essa certeza ele tem desde que, numa viagem de avião, leu num
livro da francesa Simone de Beauvoir: "É preciso saber aguardar a
simplicidade dos fatos".
*
"Eu li aquilo e me lembrei imediatamente das provas de química da época
do colegial. Eu passava dois meses assustadíssimo. Era um terror. E a
prova durava só 50 minutos - e era infinitamente mais simples do que os
dois meses que eu passara sofrendo por causa dela. Realmente as coisas
são mais simples do que parecem. A gente é que cria fantasia sobre
elas."
3 comentários:
"É preciso saber aguardar a simplicidade dos fatos. " Simone de Beavoir
Sim...Dá...
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