#UnidosSomosMaisFortes
09/09/2016
Quem sofre com a doença fica preso em rituais para aliviar a ansiedade diante de algo que parece estar errado
"Comecei a perceber algumas manias por volta dos 30 anos, mas achava que era uma coisa normal. No meu caso, é muito forte a questão da conferência: conto várias vezes para ver se a porta de casa está fechada e já quebrei a manivela do vidro do carro de tanto forçar.
No início, parecia só um sistema de conferência, mas me cansava. Hoje, com 46 anos, vejo com clareza que tenho transtorno obsessivo-compulsivo. Percebi quando procurei a terapia para melhorar o convívio com as pessoas. O TOC é algo forte, do qual não se tem domínio. Criei fórmulas para reduzir os sintomas e diminuir a ansiedade.
Pensando agora, acho que é uma coisa que me acompanhou a vida toda. Quando era guri, tinha o guarda-roupas todo alinhado, e diziam que era porque sou virginiano. Ao escrever, se borrava, jogava o papel fora e fazia desde o início. Não consigo fixar nada na parede — de tanto apertar o parafuso, cansei de estourá-lo. Parece besteira, mas no dia a dia é bem desgastante. O TOC te consome.
Usei medicamento por dois anos, hoje mantenho só a terapia. Estou bem melhor. Quando saio de casa, ainda preciso conferir se está tudo fechado, mas faço isso só uma vez.
E tento utilizar isso para o lado positivo. Sou administrador de empresas e faço consultoria empresarial. Em transações de negócios, por ser muito detalhista e observador, enxergo as falhas rapidamente. É cansativo, mas não tenho retrabalho por conferir de forma supercriteriosa desde o início.
Na vida pessoal, tu acabas te isolando um pouco, e às vezes as pessoas não conseguem entender que tu não tens domínio. Por outro lado, gostam de comprar telefone e carro meus, porque sou muito cuidadoso. Gostaria de conseguir colocar um celular junto com as chaves e não me preocupar em arranha-lo. mas não dá."
O relato que abre esta reportagem é do administrador de empresas Jorge Ângelo Rodrigues, que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). A doença, caracterizada por sintomas como necessidade de enxergar objetos organizados de forma simétrica, medo de contaminação e revisão excessiva de tarefas já realizadas, tem causas e efeitos bastante variados.
É o que explica o professor Ygor Arzeno Ferrão, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). O especialista afirma que a ocorrência está ligada à interação entre base neurobiológica bem estabelecida, questões genéticas e fatores ambientais.
— Não basta ter uma tendência genética.
Há necessidade de fatores ambientais, como algum trauma ou estresse agudo ou crônico. Assim, se uma pessoa tem uma carga genética muito forte (e, por consequência, certa fragilidade neurobiológica), basta um pequeno evento para desencadear a doença. Por outro lado, se não há herança genética, é preciso um fator ambiental bem maior — relata Ferrão, que coordena o Ambulatório de Transtornos de Ansiedade e TOC do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas.
Professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Aristides Volpato Cordioli relata que a probabilidade de uma pessoa com TOC ter um familiar com o transtorno é de quatro a cinco vezes maior do que uma que não sofre da doença. Se um dos gêmeos tem TOC, o risco de o outro também ter é de quase 50%, ressalta o psiquiatra.
— É bastante evidente que, no TOC, a pessoa aprende a lidar de maneira errada com seus medos. Ela descobre que fazer um ritual e evitar tocar em coisas de que tem medo lhe deixa mais tranquila, e passa a repetir — diz Cordioli, autor e organizador de livros sobre o tema.
Os sintomas não se apresentam, necessariamente, com a predominância de um tipo. De acordo com a professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Roseli Gedanke Shavitt, pessoas com o transtorno podem ter mais de um ao mesmo tempo:
— Estudamos bastante a questão do tipo de sintoma, de qual é mais grave numa determinada pessoa e em um determinado momento. O que a gente vê é que, tanto pode ter um grupo de sintomas mais importantes, como pode ter empate entre, por exemplo, contaminação e simetria ou medo de provocar um dano para alguém e escrupulosidade. Há várias combinações possíveis.
Não posso ver nada desalinhado. Tenho TOC?
Organizar o guarda-roupa por cor, tamanho e virar todos os cabides para o mesmo lado. Alinhar simetricamente todos os quadros (inclusive em uma parede que não é da sua casa). Contar os passos enquanto caminha. Somar os números das placas de todos os automóveis que vê na rua. Quem faz coisas assim tem TOC?
— São sintomas. Mas um sintoma isolado é muito frequente na população em geral. Isso pode não ter significado clínico. Se isso não faz a pessoa perder mais tempo do que ela precisa no dia dela, se ela não sofre por causa disso, se ela não vive em função disso, é só um hábito ou necessidade para se sentir bem. É problemático quando ela se atrasa no trabalho ou falta para ficar organizando o guarda-roupa, por exemplo, ou quando quer parar e não consegue, pois sente um desconforto muito grande quando tenta parar — explica Roseli Gedanke Shavitt, da USP.
Para se diagnosticar o TOC, não basta a confirmação de obsessões e compulsões (veja a diferença abaixo). É preciso observar alguns aspectos como o tempo que os rituais tomam da pessoa e se há sofrimento ou desconforto.
O diagnóstico é feito por meio da avaliação de um especialista, normalmente um psiquiatra ou um psicólogo. Muitas vezes, os sintomas são negligenciados por quem tem a doença, fazendo com que o tratamento se inicie com quase 20 anos de atraso, salienta Ygor Arzeno Ferrão, professor da UFCSPA:
— Isso significa que já houve muitas perdas no meio do caminho: quadros depressivos associados, perdas de oportunidade acadêmicas e profissionais, perda de relacionamentos etc. Elas, provavelmente, dificultarão a vida do paciente e de seus familiares, tornando a resposta aos tratamentos bem mais difícil.
A gravidade da doença, conforme o professor aposentado da UFRGS Aristides Volpato Cordioli, pode atingir níveis extremos:
— Entre os pacientes com TOC, 10% tem uma incapacidade grave. Neste ponto, se compara com outras doenças mentais como esquizofrenia. As pessoas passam o dia todo fazendo rituais, não conseguem interromper, não conseguem trabalhar, ter vida, desenvolver autonomia, e acabam sobrecarregando a família.
Há dois tipos de tratamento, e os especialistas recomendam que sejam combinados: a terapia cognitivo-comportamental e a utilização de medicamentos conhecidos como inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS). Mas evita-se falar em cura.
— A gente não fala em cura porque a regra no tratamento é ser mais comum a pessoa manter alguns sintomas residuais do que zerar. A diferença é que esses sintomas residuais nem interferem na vida da pessoa, não trazem sofrimento, mas estão ali — pondera Roseli.
Medo de ferir ou ser ferido
Pessoas com obsessão de que possam se ferir com algum objeto (como garfo ou faca), que têm medo de segurar ou estar perto de coisas pontiagudas. Também pode ser obsessão de que alguém a fira por não estar sendo cuidadoso o suficiente.
Entenda a diferença
Obsessão: pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que invadem a consciência e causam ansiedade, medo ou desconforto.
Compulsão: comportamentos repetitivos ou atos mentais para diminuir ou eliminar a ansiedade ou o desconforto decorrente das obsessões. Relacionam-se com regras que devem ser seguidas rigidamente.
TOC também é coisa de criança
Os sintomas do TOC podem começar ainda na infância. Em geral, manifestam-se primeiro nos meninos e, no que avança a idade, o índice de meninas com a doença aumenta até se equipararem na vida adulta. A ciência ainda não sabe dizer por que há essa diferenciação por gênero, mas isso também é uma verdade para outros transtornos psiquiátricos.
— Os sintomas são muito semelhantes tanto em adultos quanto em crianças e adolescentes. O que muda é que, na infância, alguns sinais são mais frequentes e mais fáceis de aparecer do que outros — analisa Maria Conceição do Rosário, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A psiquiatra, coordenadora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência (Upia) da instituição, explica que, quanto mais novas as crianças, mais comum é a presença de compulsões sem obsessões. Um exemplo é a alta frequência com que alguns meninos e meninas lavam as mãos, checam se alguma coisa está do jeito que imaginam que tem de estar ou caminham desviando da linha da lajota.
— Existem algumas fases em que ter sintomas obsessivos- compulsivos é absolutamente normal. Dos dois aos cinco anos, é muito frequente que as crianças tenham rituais, como querer que os pais contem histórias sempre do mesmo jeito ou que os alimentos não toquem uns nos outros dentro do prato. Algumas pessoas têm esses rituais e depois não desenvolvem TOC — relata Maria Conceição.
Aristides Volpato Cordioli, professor aposentado da UFRGS, ressalta que, quando o TOC se apresenta muito cedo, o fator genético fica mais evidente. Segundo ele, o mais comum é que se inicie durante a adolescência:
— Dificilmente começa depois dos 25 anos ou em pessoas mais velhas. Muitas vezes, compulsões e obsessões podem ser sintomas de doenças neurológicas. Quando começa depois dos 40 ou 50 anos, essa pessoa pode estar tendo tumor cerebral ou outras doenças neurológicas nas quais possa fazer parte uma compulsão.
Quando os pais querem ajudar, mas atrapalham
Quanto mais nova for a criança, mais difícil é fazer o diagnóstico, pois os sintomas são muito parecidos com comportamentos normais para a idade. Para se chegar a uma conclusão, não é considerado apenas se há rituais ou pensamentos obsessivos: é importante, como nos adultos, verificar a frequência com que eles acontecem, a intensidade e o quanto eles causam incômodos, desconforto ou ansiedade.
— Os sintomas precisam ser investigados e, caso sejam confirmados, encaminhar para tratamento o mais rápido possível. Quanto menor o tempo de duração da doença, mais eficaz é o tratamento — afirma Maria Conceição, acrescentando que o tratamento não será, necessariamente, com medicamento:
— Quando os quadros são muito leves, só fazendo psicoeducação e orientando a família para lidar melhor com os sintomas, a criança já melhora, principalmente as muito novas.
A especialista alerta para um comportamento chamado de acomodação familiar. Por exemplo: quando a criança demora muito no banho, a mãe entra junto para que ela leve menos tempo, ou o pai escreve a lição para deixar a letra como o filho imaginou.
— Os pais querem ajudar, mas isso aumenta a possibilidade de as compulsões continuarem. A terapia comportamental é baseada em ter a vontade ou impulso de fazer o ritual e tentar se controlar o máximo. Se os pais vão lá e fazem, a criança não passa pelo momento de tentar resistir — diz a professora.
Sinais de alerta
— Os rituais são considerados normais em crianças pequenas. Então, há outros aspectos que tem de ser analisados: eles causam incômodo ou sofrimento? Ajudam ou atrapalham? Isso pode ser visto, por exemplo, em um dia em que a criança vá dormir na casa de um colega: se ficar muito ansiosa por não realizar o ritual, é um sinal de alerta.
— A criança deixa de fazer alguma coisa por causa de seus rituais? Se algum acontecimento como viagem ou festa de aniversário interfere no dia a dia, a criança fica muito ansiosa ou não sente falta? Esses são sinais que podem dizer se ela precisa de ajuda ou se está tudo bem.
— Muitas vezes, as crianças escondem dos pais os sintomas. Se elas começam a ter rachaduras ou irritação na pele por causa da frequência de lavagem das mãos e se o tempo no banheiro é maior do que o comum, tem-se um indicativo.
— Outro sinal é a queda no rendimento escolar, provocado por idas frequentes no banheiro e demora ao fazer as lições decorrente do tempo de checagem dos exercícios. A redução no número de amigos, devido à vergonha ou medo de que descubram os sintomas, também merece atenção.
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