NUNCA VI ATEU EM LEITO DE MORTE, DIZ MÉDICO...

01/03/2018

No hospital São Francisco, da Santa Casa de Porto Alegre, são realizadas pesquisas relacionando a fé e a cura

O Hospital São Francisco, um dos sete que compõem o complexo da Santa Casa de Porto Alegre é dirigido pelo médico cardiologista e escritor Fernando Lucchese. Em 48 anos de profissão ele já realizou mais 100 transplantes cardíacos, além de milhares de outras cirurgias. Um dos temas em que é considerado autoridade é a relação da fé com a cura. Lucchese recebeu o Ibiá, revelou a origem da sua curiosidade sobre o tema, seus estudos e os muitos “milagres” presenciados. Confira os principais trechos.

Da onde surgiu o seu interesse em pesquisar a relação entre a fé e a saúde?
Tenho formação religiosa, fui seminarista. Mas fiquei muito tempo afastado. O grande divisor de águas foi quando, numa biblioteca, na Carolina do Norte, EUA, descobri trabalhos publicados por um sujeito chamado Harold koenig e fiquei impressionado. Fui até a bibliotecária e disse: quero falar com esse homem. Koenig é neuro-cientista, psiquiatra e chefe do departamento de estudos de espiritualidade da Duke University, uma das universidades que mais contribui nessa área. Me apresentei a ele e disse estar impressionado pelo número de trabalhos. Passei um sábado na casa dele, fizemos churrasco, ficamos amigos e ele me passou uma série de informações sobre importância da oração, mudança de resultados em cirurgias com situações de alto risco. Mostrou-me, por exemplo, o que acontece quando o médico reza junto do paciente. O que acontece com indivíduos que têm vida espiritual ativa antes de uma cirurgia cardíaca. Ele tem mais de 40 livros e 300 artigos publicados.

Ao voltar ao Brasil eu comecei a montar um grupo para estudar esse assunto e ele sempre foi o nosso tutor. Com o crescimento das pesquisas criamos o Gemca – Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular, hoje com sócios no Brasil todo. Durante o Congresso Brasileiro de Cardiologia (CBC), o maior da América Latina, nós fazemos sessões de debate sobre o tema. Há consistência. Estamos diante de um novo paradigma: a religiosidade interfere fortemente no transcurso da doença e no desfecho. 
Religiosidade e espiritualidade conseguem inibir a evolução nefasta da doença.

Fernando Lucchese, médico cardiologista, diretor do Hospital São Francisco e escritor

A ciência vem então se abrindo para essa possibilidade?
Completamente. Inclusive há quem não acreditava, colaborador aqui da área clínica. O convidei para participar de uma reunião e ele me disse “isso é ciência e eu sou obrigado a acreditar”. Transformou-se numa linha de pesquisa respeitada. Temos salas lotadas no CBC para ver os resultados das pesquisas.

Como a importância da fé à saúde é transmitida no consultório, considerando os diferentes credos?
É uma abordagem supra-religiosa. Quando um paciente vem operar comigo eu sempre pergunto se tem alguma religião ou fé. A maior parte responde que já esteve em seu pastor, padre ou centro espírita. Eles já vêm prontos porque são cirurgias de risco. “Doutor nem me fale nisso, sou agnóstico”, é raro. Houve até um caso que antes da cirurgia a pessoa avisou que não queria nenhum envolvimento religioso. Operação correu bem e, já no quarto, houve uma arritmia. Ele se apavorou, me chamou e entregou um papel com o nome de uma pessoa. Era um pastor. Eu nunca vi ateu em leito de morte. Na hora do acerto de contas o sujeito volta atrás e acredita em algo.

E como é tratada a diferença entre religiosidade e espiritualidade?
O IBGE aponta que 95% dos brasileiros acreditam em Deus, em diversas religiões. Não importa. A crença numa divindade caracteriza a espiritualidade. E a religiosidade é a manifestação pública dessa espiritualidade. Tem quem exerça a sua espiritualidade sem religião alguma. Para nós, na pesquisa, é mais fácil medir religiosidade que espiritualidade, já que está é mais pessoal e intrínseca.

A aceitação da ciência para religiosidade inclui manifestações como benzas, imposições de mãos e cirurgias espirituais?
Sim. Tudo isso está sendo estudado, de alguma forma. A imposição de mãos já tem vários estudos e a Associação Médica Espírita é muito forte e ativa. Há estudos que mostram mudanças de comportamento após uma imposição de mãos. Existe um efeito placebo – que não tem ação real – importante. É difícil separar. Tu vai na benzedeira por conta de uma verruga e ela desaparece. Foi a benza ou o ciclo vital da verruga? É difícil de confirmar. Nós temos hoje uma atitude menos castradora sobre esses procedimentos porque na história já tivemos de engolir coisas que não acreditávamos e depois foi provado que funcionava. Existem temas muito difíceis como, por exemplo, vida após a morte. Temos pesquisas com indivíduos que tiveram paradas cardíacas, relatos do que eles viram e a sensação depois que voltaram. É complexo porque não temos certeza absoluta. Mas temos de aceitar que existe uma verdade que talvez não esteja suficientemente revelada.

A fé pode ser prejudicial? Existem casos de quem abandona tratamento médico apenas para se apoiar na espiritualidade?
Isso é uma praga. O sujeito faz uma cirurgia pelo espaço, acha que está curado e não aceita o tratamento contra o seu câncer. Um ano depois ele morre. E nesse intervalo ele propagou para todos que foi o melhor que ele fez na vida. Depois, quando o câncer volta, ele encara como se fosse Deus que o penalizou. Religião não é prescrição médica, é apoio à cura da doença. Abandono de tratamento é um erro brutal e tem sido feito em função da fé.

A visitação a doentes em hospitais por parte de religiosos auxilia?
Auxilia muito. E os hospitais deveriam ter uma estrutura melhor para isso. Digo inclusive nós aqui da Santa Casa. É difícil manter um plantão de capelães, sendo o hospital tão grande. As visitas são importantes porque trazem ânimo.

Como a fé é conduzida nos casos em que o paciente vem a óbito?
Nós somos finitos e a medicina tem suas limitações. Chega um momento em que tu perde o controle da doença. Eu insisto com meus assistentes para que, no momento em que estamos perdendo um doente se faça uma oração. “Senhor, a minha ciência trouxe esse irmão até aqui. Daqui por diante eu não tenho o que fazer. Estou entregando ele nas tuas mãos”. Fiz isso muitas vezes na minha vida.


O senhor viu casos de cura quando a ciência já não apresentava saída?
Vi as duas situações. Operei uma pessoa querida, porteiro do meu edifício, em uma cirurgia que deveria ser simples. E ele morreu. É o insucesso que te mantém humilde e mostra que não pode fazer tudo. E a outra situação, em que tu está operando e surge o momento que não tem mais o que fazer. É desligar a máquina. Mas aí o coração começa a bater e o cara fica bem. São os milagres que acontecem todos os dias. Aconteceu aqui, uma pessoa ficou cinco dias com o coração parado, só na máquina. Eu considerava que não havia o que fazer. No sexto dia o coração voltou a bater. Temos que aceitar com humildade coisas que a gente desconhece.

O senhor se sente injustiçado quando o sucesso de uma cirurgia é creditado a Deus?
Não, isso é muito comum. E existe gratidão. Eu operei uma criança muito pobre. Foi preciso pagar a passagem pra família voltar pra casa, no interior do Estado. Um mês depois, estou no corredor do hospital e vem uma criança com uma laranja na mão, diz “tio, pra ti”. Foi o melhor presente. E estou sempre aberto a uma ajuda divina na hora de operar. 
Antes da cirurgia me concentro e peço ajuda de Deus.

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